segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Fragmentos

Era só para ser mais uma segunda-feira chata. Mais chata ainda por causa da chuva da madrugada ainda sobre os assentos do ponto de ônibus, mesmo que quase secos pelo sol que já raiava firme e forte.

Era só mais uma segunda-feira chata em que me levantei e fui concretizar o ritual banal de locomover-me à outra cidade, tão cedo, só pela necessidade conflitante do capitalismo semi-domesticado que rege o mundo.

Era só mais uma segunda-feira. Eu triste, desgostosa pelo simples fato de ser segunda-feira. E era só. Chego no trabalho e entre os gestos furtivos de olhar os e-mails antes de começar a de fato trabalhar, acho um sorriso diagonal em forma de texto, tão distante, lá em Guaratinguetá (eu acho).

Um dos meus escritores e poetas preferidos que me concedeu certa vez a honra de entrevistá-lo me manda um e-mail com gosto de marshmellow, mais doce que bala Juquinha, Dimbinho ou Sete Belo.

E usou o texto de outro escritor favorito, publicado pelo Estado de S. Paulo no dia 22 de abril de 1986 (2 anos, 7 meses e 4 dias antes de eu nascer). Segue abaixo, seguido de um enorme obrigada a Paulo Almada que tirou o sabor acre da minha segunda-feira.

DOIS OU TRÊS ALMOÇOS, UNS SILÊNCIOS

Fragmentos disso que chamamos "minha vida"

Caio Fernando Abreu

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Tour du France

"A sorte é como o Tour du France: esperamos tanto e passa tão rápido".

A retórica acima pertence ao roteiro de um famigerado filme francês. E começo acreditar que é verdade.
Sou do tipo de pessoa constantemente vitimado pelas Leis de Murphy. Algumas situações até renderam alguns posts aqui anteriormente. O show do Lenine no Sesc Santo André foi uma exceção... o indivíduo que guardava os carros disse que os ingressos estavam esgotados, eu duvidei dele e consegui comprar. Mas o ponto não foi sorte, foi teimosia.

Em suma, eu nunca ganho nada. Muito pelo contrário, costumo perder. Desde aquelas máquinas de pegar bichinhos com garras de metal até os concursos culturais em que pensava nas respostas mais mirabolantes que me rendessem os ambicionados prêmios.

Da última semana para cá, de alguma forma, me sinto mais sortuda. E um prêmio de concurso cultural do Jornal da Metodista mostrou que não estou tão enganada assim. Convenhamos que o prêmio não é um Nissan Frontier cabine estendida, mas só o fato de ganhar algo, alguma vez, me fez sorrir.

É provável que somente eu tenha participado da promoção ou que as outras respostas fossem inteligíveis. Mas estou feliz, me sinto um pouco menos azarada, um pouco mais sortuda, um pouco mais.

E se a sorte é mesmo o Tour du France, eu quero ser a primeira.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Diz-co-grafia

Assim como Lenine, eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos, como um deus. Hoje amanheci mortal. Daquelas bem frágeis, que não domam seus instintos, seus pensamentos, suas emoções.

Chico disse que "Vai passar". O contexto era diferente, mas acho que cabe aqui. Vai passar. Só sei que ando tão "À flor da pele" que qualquer coisinha ínfima me faz chorar. Mas logo eu rio, como de desespero. A fuga na comédia que só uma legítima Drama Queen compreende.

Tenho procurado "A paz na solidão". Em vão. Me sinto só mais uma cabeça no rebanho de "Admirável gado novo". "Ideologia", eu quero uma para viver. "Como nossos pais". Danço na corda bamba, de sombrinha, sabendo que posso me machucar tentando ser "O Bêbado e a equilibrista".

E nessa correria, só queria ir de Chico novamente e soltar um enorme "Cálice" para o mundo. Ser um moleque do Brasil, tal como Caetano, participando como "O mistério do planeta". Virar para todos e dizer "Nem vem que não tem".

Devia assumir que sou meio "Maluco Beleza" e que vou controlando minha maluquez, misturada com minha lucidez. Pois eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar. Quem vai de não não chega não. Eu não almejo o "Ouro dos tolos".

"A menina dança". Você abre o olho e a menina ainda dança. E usa touca vermelha e batom vermelho girassol. Não é a flor do desejo, mas é "La belle du jour". Ou pensa que é. Pobre coitada, nem beira "Todas elas juntas num só ser".

Pode não ser, mas tem a força para saber que existe. Não vacilo, mesmo derrotada. Envolta em tempestade decepada, seguro a "Primavera nos dentes". Passo longe de ser "Hurricane", mas é difícil superar tamanha injustiça. O fator Drama Queen prevalece.

Com uma boca à lá Steven Tyler, digo apena que "I don´t want to miss a thing". Yeah, "Just do it", clichê Copacanaclubiano. Ou apenas "Let it Be".

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Acordo

- Façamos agora um trato: eu te liberto se você me libertar. Porque é injusto eu ficar preso enquanto você vaga livre, como se fosse inocente. Você sabe que não é.

- Eu sei, mas não posso te ajudar se você não me ajudar! Eu também tenho uma vida, tenho meus projetos! Acha que planejei tudo o que aconteceu? Só aconteceu e...

- E você nunca planeja nada. Por isso vive assim. Queria eu ter esse espírito livre de perturbações. Um parafuso fora do lugar me tira o sono. Você é completamente diferente.

- Discutir não vai levar à nada. Anda, me diz como eu saio daqui.

- Só se você fizer o trato.

- Feito. Como saio daqui?

- Tateie em direção oposta a que veio, siga as sobras de corda. Quando ouvir um barulho de água, comece a ir pela direita. Lá você acha a saída. E nunca mais toque em explosivos dentro de grutas!

- Certo, vou buscar ajuda. Não saia dai e aguente firme.

- Não se preocupe, não tenho planos para o fim de semana e mesmo que tivesse, essa enorme rocha que amputou minha perna vai impedir o futebol com o pessoal do trabalho.

- A rocha não amputou nada. Ainda. Eu voltarei. Tente ficar bem.

- Tentarei.

Ele saiu. Sentia a culpa caindo sobre os ombros, junto com escombros do trecho recém-explodido. Sabia que tinha que voltar. Era responsável por aquilo. Mas o medo o impedia. O bloqueava, como as pedras que bloqueavam a locomoção do companheiro, resignado a gruta.
Ninguém sabe se voltou. Ninguém sabe do outro. Ninguém sabe de nada.