segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Sobre cachorros pretos

Descobri a depressão aos 14 anos. Na época, foi minha primeira consulta com um psicólogo, depois de um encaminhamento do hebiatra, fascinado pelo histórico psiquiátrico da minha família. A bem da verdade, meu tio foi responsável por muito disso e a coisa não melhorou muito depois que ele se suicidou, em 2006.

Entorpecida pelo espírito rebelde da juventude, obviamente ignorei a guia para encaminhar o tratamento. Aos 14 anos, a minha maior preocupação não era um diagnóstico de depressão ou encaminhamento para um grupo de tratamento. Ao contrário, isso só iria tornar essa coisa terrível que é a adolescência em algo pior. Era só uma fase e iria passar quando terminasse o ensino médio.

Não estava de todo errada. Três anos depois e eu tinha namorado, emprego, passado no vestibular e estava prestes a serrar as correntes com o ensino médio, época desgraçada na vida das jovens magrelas e nerds. A faculdade era a chance de sair daquela mediocridade para embarcar em outra, mas ainda que medíocre, era uma novidade. A vida começava a tomar rumo e tinha esquecido a guia na gaveta, junto com a batelada de exames que a hebiatra pediu.

Em um vídeo da Organização Mundial de Saúde sobre depressão, é usada a metáfora de que a doença é como um grande cachorro preto. E é uma ótima comparação, por isso, vou adotá-la na retórica. O cachorro preto parou na minha porta aos 18 anos. Afastada do trabalho, terminei com o namorado, tranquei a faculdade e tudo parecia ter se dissolvido. Eis que o cachorro preto surgiu em minha vida.

Envolta pelo sentimento de impotência, não conseguia mais comer e tudo tinha gosto de espuma. As preocupações (voltar para o trabalho, pagar a faculdade, superar os relacionamentos) começaram a me tirar o sono. Parei de dormir, apenas desmaiava por cansaço, cerca de 3 horas por noite. Obviamente a combinação de não dormir e não comer desencadeia a perda de peso súbita e tornei-me um saco de pele, cabelo e osso com 37 quilos, distribuídos em 1,67 de altura.

O farmacêutico, que me conhecia desde criança e aplicava minhas injeções para rinite quando tinha seis anos de idade, viu que eu estava mal. Logo sugeriu a minha mãe que me desse um remédio natural para dormir. Eu tomava 4 cápsulas, mas meus olhos se recusavam a fechar. Era como se um enorme cachorro preto estivesse sentado no meu peito e doía.

Levou cerca de 4 meses para conseguir retomar as atividades, aceitar os fatos e recuperar o apetite e o sono, graças ao novo namorado que eu acabava de arrumar. Ele e sua família foram responsáveis por me ajudar a sair da primeira grande crise de depressão e serei eternamente grata por isso.

O ano era 2010 e tudo havia mudado: empregos, o namorado, a rotina, a grade curricular da faculdade. Retomei o jornalismo, tinha um grupo de novos amigos, um emprego e nem pensava no tal cachorro preto. Ciente de ser a principal responsável pela minha felicidade, troquei de estágio para trabalhar com algo que realmente gostava. Naquele momento eu estava bem próxima do que até então considerava o ideal humano de felicidade.

Foi quando o então namorado decidiu terminar e quando olhei pelo portão, lá estava o cachorro preto, esperando que eu abrisse para ele entrar. Estava triste e permiti não apenas que entrasse, mas comesse do meu prato e dormisse na minha cama. Ele tinha paralisado minha vida e transformado um término de namoro, dois furtos e uma perseguição em pânico. 

Já não podia mais sair na rua, com medo de morrer. E era somente nisso que eu pensava: na morte. O cachorro preto me apresentou à Síndrome do Pânico e ela entrou sem perceber junto com ele quando abri o portão. Sem me dar conta, parei de comer de novo e só pensava em dormir. Dormir e morrer. Não pensava em me matar, mas via uma oportunidade para morte em cada coisa que fazia: achava que iria ser empurrada na linha do trem, atropelada por um ônibus, me engasgar com a comida, ser esfaqueada na rua. Pensava na morte - e no medo de morrer - o tempo inteiro.

Não conseguia comer e de novo lá fui parar na casa dos 30 e poucos quilos. Meus pais estavam desesperados, divididos entre a linha tênue que busca por ajuda e me culpar inconscientemente por aquilo. Os amigos mais próximos perceberam o quão fundo era o poço no qual eu estava e buscaram me tirar de lá de qualquer forma. Foi o período da minha vida que mais vi cultos, missas, que mais recebi passes e mais leram a bíblia para mim. Foi quando um amigo percebeu a gravidade e conseguiu uma psicóloga disposta a me tratar em um regime de bolsa, já que eu não podia pagar.

Se não fosse por eles, eu provavelmente teria morrido. Não por causa de nenhuma obsessão da minha cabeça, mas por uma infecção no sangue que se alastrou para os órgãos. É desnecessário dizer que a tristeza de mãos dadas com a má alimentação e pouco repouso baixam a imunidade. E que isso desencadeia patologias inúmeras tornando o distúrbio mental em algo físico. 

Tudo por causa do cachorro preto, que morava no meu peito, que não me deixava dormir, comer ou até mesmo sorrir. Durante seis meses da minha vida eu chorei todos os dias. Não mais na frente dos meus pais, que viviam em estado de alerta por minha causa. Não mais na frente dos meus amigos, que muitas vezes me acolheram. Chorava no ônibus, no metrô, no banheiro, indo ou voltando do trabalho.

Graças aos amigos, aos meus pais e à terapia, domei tão negro canino. Soltei-o e deixei que desse uma volta. Uma longa volta, que o fez retornar em 2013, sem motivo aparente. Quando percebi que ele estava chegando, fui procurar ajuda médica.

Ao contrário do que a maioria pensa, o tal do cachorro preto não é apenas uma tristeza crônica. A depressão - que possui diversas causas e sintomas, tratamentos e razões - na minha condição era uma total ausência de sentimentos. Nem tristeza, nem alegria, medo ou euforia, eu estava estática. Tamanho não foi o alívio após a conclusão médica de que tudo isso não passava de um distúrbio químico no meu cérebro e alguns comprimidos poderiam resolver.

Dentre todas as possibilidades que acarretam o tal do cachorro preto (traumas, situações desgastantes, perdas), a minha era a mais simples e puramente química. Quando entendi que meu cérebro simplesmente não produzia a quantidade devida de serotonina e por essa razão eu ficava naquele estado, tudo ficou mais claro.

Claro não é sinônimo de fácil, mas entender o problema ajuda na solução. Logo, algumas visitas com o psiquiatra e a psicóloga e entraria para a vasta porcentagem consumidora de antidepressivos. Comecei com a fluoxetina (famoso Prozac), 20 mg ao dia. Não resolveu muito e a dose foi dobrada, triplicada. Quadruplicada. Eis que a fluoxetina só me dava tosse e já não fazia mais efeito. Os médicos trocaram para a sertralina (ou Zoloft, como preferirem) de 50 mg.

Em setembro, vai fazer um ano que não tomo mais nenhum remédio. Parei todos sob orientação médica e claro, tenho minhas recaídas. Entretanto, é gratificante saber que mesmo sendo uma questão mais química que psicológica, hoje eu consigo dominar meu cachorro preto. Inúmeras coisas me fizeram entristecer nesse período, afinal, somos todos humanos (menos o Keanu Reeves, acredito em sua vampiresca ancestralidade).Uma delas, inclusive, um tumor hipofisário que só reforça a questão do descontrole hormonal latente em meu cérebro. 

A grande sacada, no final das contas, não é que você tem, fez ou fizeram com você para que o cachorro preto entrasse na sua vida, mas sim como você lida com isso. Esse texto talvez tenha sido um dos mais difíceis de escrever até agora, porque escancara tudo que levei anos para entender. E se você chegou até aqui e consegue se identificar com alguma coisa, então já valeu a pena. Tomei coragem depois que uma amiga expôs (de maneira muito mais literária e bela) sua experiência com a depressão e agradeço a ela por isso. Obrigada por me dar forças Jules.




2 comentários: