sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A primeira entrevista do ano

Era uma quinta-feira nublada e com cara de segunda. Isso em pleno verão. Isso no terceiro dia do ano. Mal havia saído das ressacas (morais ou etílicas) das festas de final de ano e lá estava eu, preocupando-me com o que vestir para a primeira entrevista do ano. E a primeira entrevista depois de formada. Em uma redação. De verdade, daquelas com tipos exóticos que usam All Star amarelo e óculos retrô ou velhos de guerra do jornalismo, sempre trajando mau humor e camisas sociais com padrões horríveis da década de 1980, em contraste com as calças cáqui e os cintos caramelo. Lá ia eu.

A entrevista era depois do almoço. Estava sem fome, acordei às quatro da manhã e comi macarrão com queijo, joguei algumas alcaparras e tomei duas taças de vinho chileno na esperança de conseguir dormir. Aquela coisa que uns chamam de insônia, outros de ansiedade e que costumo me referir como "síndrome de precisar ter que dormir e nenhuma capacidade para tal". Acontece.

O dia pedia galochas e ao contrário dessa legião que acha São Bernardo do Campo a Londres do ABC, minhas galochas são azuis. Sem tartam, sem grafismos ou caveiras com rosas. Azul marinho, sem graça e tipicamente identificável nos pés das melhores cantineiras das escolas públicas. Lembrei dos meus tempos de escola e de uma cantineira apelidada de Misu. Nunca entendi o apelido e nunca soube o nome dela. Para ser sincera, eu nem lembro ao menos de seu rosto. Mas lembro que vendia o melhor enroladinho de pizza que já provei na vida. O melhor até o momento, até hoje, até minha vida na presente data: 3 de janeiro de 2013. O dia da primeira entrevista de verdade numa redação depois de formada.

Nunca me preocupei muito com a maneira de me vestir. Busco peças aleatórias que me impeçam de ser presa por atentado ao pudor e está bom. "Para quem é, bacalhau bosta", bem diria minha mãe ao fazer um legítimo trocadalho do carilho com a frase original. O problema é que entrevistas exigem uma apresentação menos teen, mais profissional - mas sem excessos, afinal, sou jornalista, não promotora da justiça ou vendedora de enciclopédias. Alguém ainda vende enciclopédias? E se o faz, ainda o faz de gravata?

Pego o vestido mais bipolar do guarda-roupa, coloco uma meia-calça cinza e calço as galochas. Um lenço de bolinha no pescoço e a bolsa (que mais parece um bornal) de couro com o nome de um italiano famoso (furtada do armário da minha avó, restaurada com hidratante barato e em plena atividade). Estou pronta. Alguns diriam que é despretensão chic, outros, ugly beauty. Mas se resume a: não tenho muita imaginação para me vestir.

Fui para o ponto de ônibus movida pelo desejo de comprar uma bicicleta com cestinho. Sempre quis uma bicicleta com cestinho. Dessas que as mocinhas nos filmes colocam margaridas e saem pedalando com seus vestidos floridos por ruas em Paris. A diferença é que meu vestido não era florido. E eu não estava em Paris. Meu destino era outro. Meu estado de espírito idem.

Após girar a roleta, agora R$ 3,30 mais pobre, procurava um acento não molhado, não sujo, não próximo a alguém com cara de molestador de criancinhas ou fã de Oasis (e enfatizando isso com seus fones de ouvido no último volume). Pesquisei em vão e decidi ir em pé até o Terminal.

Eis que cheguei e as pessoas em volta, vulgo os "locais", me olham como se eu fosse um OVNI besuntado na Becel. Devem ser as galochas e não dou muita atenção. Sigo o meu destino. Após caminhar 20 minutos e perguntar para 35 pessoas se conheciam o endereço, quase morro atropelada em uma avenida de mão dupla por conta de um Chevette branco que furara o semáforo. E na corridinha encontro a tal redação, que há preciso 30 passos, a moça de legging de guepardo disse que nunca tinha ouvido falar.

Parei, olhei ao redor, vejo uma fresta entre uma Kombi branca e o portão. Bato na porta de vidro e entro. Uma recepcionista com longos cabelos negros que não parecem de verdade sorri e questiona meu objetivo.
Respondo que tenho horário marcado com a Selma. Ela, sem desmontar o sorriso, responde que a Selma ainda não havia chegado e digita compulsivamente o ramal dela. São 17h. A chuva me atrasou 20 minutos do meu horário previsto. Selma, ao telefone, tinha me instruído a chegar após às 15h30. Eram 17h e Selma não estava lá.

Após 15 minutos, a moça sorridente disse que eu poderia subir dois lances de escadas, pois a Judith faria minha entrevista. Agradeci e subi, dobrando a esquerda na poltrona de courino preta do segundo andar. Minhas pernas tremiam. Era a primeira entrevista depois de formada. Entrei e vi diversas baias opressivas com topos de cabeças que pareciam fumegar. Uma senhora de aparência cansada esboçou um sorriso e me convidou a sentar. Me sentei.

- Então, você é a Elsa.

Fiz um sinal positivo com a cabeça.

- Prazer, sou a Selma. Então, a gente vai te fazer um teste, muito simples, você conhece o ABC?

- Há quase 24 anos - respondi.

- Ótimo, então você tem noção do panorama pós-eleições das 7 cidades, certo?

- Sim, eu costumo acompanhar.

- Bem, de qualquer forma, tudo isso está muito fácil na internet. Eu quero um texto de aproximadamente 3000 toques sobre as os eleitos e mais um artigo de até 2000 toques sobre qualquer tema.

- Qualquer tema?

- Sim, você tem 30 minutos, boa sorte.

Sentei naquela cadeira quente e observei o monitor antigo com espasmos diante de um documento aberto e em branco no Word. Comecei pelo texto obrigatório e falei do cagão do Aurichio (não com estes termos), do Verde Michels em Diadema, do Grana em Santo André e o reincidente Marinho e por ai vai. Terminado, me restavam 9 minutos para o artigo sobre o tema que quisesse.

Olhei para a redação. Olhei para a Selma e sua fadigada feição. Olhei para as minhas galochas. Pensei no jornalismo. Pensei na faculdade. Pensei em tudo que ainda não havia pensado desde o dia em que foi anunciada a minha nota do TCC. E despejei tudo em quase 5000 toques. "A Selma vai ficar putaça" foi o pensamento final. Avisei-a de que tinha acabado e ela disse para eu salvar no desktop em um arquivo com meu nome. Disse que se gostasse, me ligaria e me dispensou rapidamente. "Ela deve estar abarrotada de trabalho."

Agradeci, desejei feliz ano novo e desci as escadas. Olhei para a recepcionista e suas longas madeixas negras que contrastavam com seu batom nude. Desejei a ela também um ótimo 2013 e saí. Já havia parado de garoar e decidi ir andando até a estação. Algo que me diz que o texto obrigatório me contrataria, mas meu artigo provavelmente me botou na geladeira. Ossos do ofício.

* Esse texto é ficção, porém com alguns fatos verídicos. Quais eu não direi. E os nomes não correspondem aos nomes legítimos por pura vontade da autora.



3 comentários:

Isadora Alves disse...

ficção as vezes confunde, não te conheço e li seu blog certa feita e li o post agora achando ser você a personagem,rs. Ia te desejar boa sorte.

http://comamordora.blogspot.com.br/

Elsa Villon disse...

Olá Isadora, em primeiro lugar, obrigada pela visita e pelo comentário!

Respondendo-o: acho que toda ficção tem muito de verdade, e principalmente, de verdade auto-biográfica. Mas seu comentário foi processado e tentarei utilizá-lo de maneira positiva nos próximos textos.

Obrigada mais uma vez e um bom 2013.

Nota rápida: muito do descrito de fato aconteceu.

Unknown disse...

Seu texto é muito bom, principalmente com descrição, queria ter esse talento... estou tentando começar a blogar também e já coloquei seu blog nas referências :)